sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O DESAFIO DA INSERÇÃO DO FISIOTERAPEUTA NA COMUNIDADE

O Brasil evoluiu rapidamente quanto ao número de Fisioterapeutas, nas últimas décadas. Atualmente somos mais de 130 mil profissionais, enquanto que há 15 anos éramos apenas 16 mil. A década de 1990 foi determinante neste quadro, a partir do surgimento de um grande número de escolas formadores, que ultrapassam 500 no país, hoje.

Esta mudança é boa para a saúde da população? Ou isto seria um problema? A maior 'oferta' de profissionais disponíveis no 'mercado de trabalho' representa quais mudanças no sistema de saúde do país? A realidade da assistência fisioterapêutica mudou neste período, ou não? Se mudou, em que sentido? E, neste cenário, o que não mudou?

Uma questão central para entendermos esta nova realidade passa pelo maior conhecimento da população quanto à Fisioterapia. A percepção da população nem sempre é positiva pois há assistência de qualidade e há assistência precária. As fiscalizações realizadas pelos CREFITO´s têm flagrado situações altamente questionáveis, tanto do ponto de vista técnico-científico quanto ético. O que leva à este atendimento ruim? A formação deficiente, apenas?

Outra questão importante é a democratização do acesso ao atendimento fisioterapêutico, a partir do momento que os profissionais saem dos grandes centros e se aproximam das pequenas comunidades. E, ao mesmo tempo, saem da clínica/hospital – espaços tradicionais na formação identitária do profissional – para atuarem em outros espaços. Deixamos de atender a “elite” e nos aproximamos das pessoas. A saúde pública entra em nosso horizonte de possibilidades, o que lança alguns desafios interessantes sobre o processo de formação acadêmica.

Segundo dados do CREFITO-5 para novembro de 2010, no Rio Grande do Sul somos atualmente 7.953 fisioterapeutas. Destes, 2.593 (32,5%) estão em Porto Alegre. A capital tem aproximadamente 15% da população do estado, o que nos indica uma concentração de profissionais. Por que isto acontece? Quais as razões para que não haja certa proporcionalidade na distribuição espacial dos profissionais?

Aliás, a Terapia Ocupacional enfrenta a mesma questão, pois são 552 profissionais no estado e destes 62,5% (345) estão em Porto Alegre. Muitas cidades gaúchas, frente à implantação de serviços de saúde mental têm encontrado dificuldades em contratar este profissional.

Se pesquisarmos algumas informações adicionais, veremos no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES/2009) que atualmente temos no RS 3.037 inseridos neste sistema, dos quais 1.714 atendem ao SUS e 1.323 não atendem. A relação que se apresenta no CNES é que há 0,3 fisioterapeutas para cada mil habitantes. Mas, sabemos que esta proporção está errada, já que há muitos profissionais que não estão no cadastro.

O que se percebe é que começam a proliferar concursos públicos que incluem o fisioterapeuta, realizados pelas prefeituras municipais. Também, pela empiria, percebe-se que muitas prefeituras mantém contratos com clínicas/consultórias, constituindo uma rede assistencial local, na qual o profissional caracteriza-se como prestador de serviços, com pouco vínculo efetivo com os outros profissionais do SUS. Isto contitui-se como problema, pois o diálogo e a inserção são precários.

Havendo mais concursos públicos ou contratando-se mais profissionais, mesmo com vínculo precário, torna-se necessário refletir sobre como está ocorrendo esta inserção. A formação acadêmica já assimilou esta nova realidade? O profissional que está chegando à saúde pública percebe o contexto ampliado em que está aportando? Ou continua no esquema clínica/consultório/hospital? Por outro lado, o que a gestão pública está disposta a ceder de espaços para desenvolvermos nosso trabalho? Querem reabilitadores? Querem atendimento de clínica? Ou, ao contrário, esperam de nós o envolvimento na mudança social a partir do conceito ampliado de saúde? Este debate se torna fundamental, visto que as pistas quanto às respostas já estão dadas nos próprios editais que lançam eventuais concursos.

Outro aspecto importante neste contexto é reconhecer o território em que estamos nos inserindo. Quais espaços? Municípios de maior porte? Onde as chances de inserção têm aparecido com frequência? Para fomentar o debate, alguns números:

O Rio Grande do Sul tem atualmente 496 municípios. Porto Alegre tem 1,4 milhão de habitantes (dados de 2009/IBGE). Apenas mais três cidades têm mais de 300 mil habitantes: Caxias do Sul, Pelotas e Canoas. Os demais 492 municípios distribuem-se assim:

- de 200 a 300 mil hab: 6

- de 100 a 200 mil hab: 8

- de 50 a 100 mil hab: 25

- de 25 a 50 mil: (39)

- de 10 a 25 mil: (82)

- de 5 a 10 mil: (110)

- menos de 5 mil: (222)

Retomando os números, destacamos que nada menos do 2/3 (67%) dos municípios têm menos de 10 mil habitantes. E, 222, menos de 5 mil habitantes. Ainda, filtrando as informações ainda mais: 27 municípios têm menos de 2 mil habitantes.

Por óbvio, é muito diferente trabalhar nestas diferentes realidades. Em princípio, pequenos municípios poderiam ser até melhores para realizar um trabalho. Mas, ao mesmo tempo, são municípios que tem poucos “atrativos” e, assim, tem dificuldade de captar profissionais para atuarem nas equipes de saúde da família, por exemplo. Reportagem em jornal de Lajeado (out/10) destacava o fato de 9 municípios estarem, ao mesmo tempo, com o trabalho da ESF prejudicado pela falta de médicos.

Traz-se à luz do debate esta realidade pois ela é limitadora no desenvolvimento de algumas políticas públicas. Os pequenos municípios têm potencialidades. Mas estes têm também limites concretos e imobilizantes por serem difíceis de resolver. Ao mesmo tempo que são menos presentes quadros de miserabilidade, há outras questões culturais, educacionais, de saúde a serem enfrentadas. Quais? Conhecemos esta realidade?

A questão do NASF é sintomática quanto à sua potencialidade, pensada para esta realidade. O NASF está proposto para territórios maiores, o que praticamente inviabiliza sua implantação nestes locais. A equipe de ESF, já com dificuldades para se manter estável quanto ao quadro de participantes (há ainda grande rotatividade de profissionais), não tem o aporte teórico-prático para mudar a realidade social. Se temos a “sorte” de inserir um fisioterapeuta neste contexto, como se situa? À quem recorre? Há interdisciplinaridade, intersetorialidade, integralidade? Há co-responsabilização ou, ao contrário, todos sofrem no seu trabalho pelos acúmulos?

Temos uma maioria de fisioterapeutas forjados para o trabalho na Clínica/Hospital, com dificuldades de ler a realidade em que estão. Como então, aproximá-los desta realidade? Como vivenciar outras realidades? Como sair do espaço de vida em que nos criamos e, com isto, ampliar nossos dispositivos para a intervenção qualificada na atenção primária em saúde?

Vejamos um pequeno exemplo do desafio:

João e Maria moram num casebre na vila Santo Amaro. Sua casa tem dois cômodos e nela residem mais seis filhos. Seguidamente passam fome. A casa tem um banheirinho anexo e os dejetos vão à vala que passa nos fundos do terreno. A água é encanada, a luz, um gato puxado do poste da rua. O lixo, bem, o lixo se espalha pela vila... Quanto aos filhos, são quatro meninos, duas meninas, idades entre um ano e quatorze anos (Maria tem 28 anos, começou cedo a carreira de mãe, portanto). Os maiores estão na escola. Os menores, com a mãe ou com a vizinha. Ajudam-se, os vizinhos. João trabalha na indústria. Frigorífico. Estudou até a 5ª série e teve que parar para “ganhar a vida”. Tem 30 anos e poucas expectativas. “Como será o amanhã”, haverá comida, fraldas, roupas? Maria está em casa, com os filhos, e faz bicos como faxineira. Nada que dê muita renda, é lá e cá, de vez em quando... Na vila moram mais três mil pessoas, espalhadas em quinhentas famílias, acomodadas em quinhentos casebres. Ganham pouco dinheiro. Muito pouco, e há quem esteja desempregado. A vila fica longe, num canto da cidade, e a fama não é boa: há drogas, alcoolismo, há crime/violência/tráfico, há prostituição, há muitas doenças relacionadas à higiene, à falta de cuidado, negligência com os filhos. Sobretudo, há exclusão social. As pessoas da vila, por serem da vila, carregam o rótulo bem demarcado: são da vila, são pobres. Mas que pobres são estes?

Quem são as pessoas com as quais trabalhamos? Quais os canais de comunicação que são possíveis/necessários para que possamos entrar nesta realidade tão próxima? A família fictícia descrita acima é fictícia de fato? Ou há muitas destas famílias no nosso horizonte profissional? Quais os envolvimentos da Fisioterapia com estas pessoas?

Obviamente que não teremos resposta para todas as demandas sociais. Não é a nossa ambição. A formação de equipes multiprofissionais e interdisciplinares pretende dar conta das diferentes abordagens. Mas, para que esta equipe se estabeleça é preciso quebrar com paradigmas instituídos e fortemente enraizados em nossa formação. Senão teremos o seguinte quadro: imagine-se uma sala com 5 sujeitos diferentes: um fala alemão, outro italiano, outro português, outro chinês e o quinto espanhol. Cada um domina apenas e tão somente a sua língua. Como poderão se entender? Não seria esta metáfora próxima da realidade em algumas equipes de saúde, onde cada profissão fala a sua 'língua'? Como se faz o diálogo?

Não é o caso de se fazer um quadro de que nada está acontecendo. Há várias iniciativas que têm trazido ao cenário da construção do SUS novas experiências que aproximam os profissionais. Novos códigos de comunicação/linguagem vêm sendo contruídos e isto tem impactado a realidade do trabalho em saúde.

O que se propõe é a reflexão contínua quanto à complexidade social e os diferentes aspectos que devem ser considerados. A desigualdade social continua muito próxima de nossa realidade de vida e, enquanto profissionais de saúde, temos a oportunidade de agir.

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